Ao mestre Claudio Ulpiano
(que me ensinou a pensar no acaso dos encontros)Claro que estava nervoso. Sabia que os detalhes eram importantes e colocou sua melhor roupa. Queimava o terceiro cigarro enquanto aguardava o clássico: ‘pode entrar’, e sua mente percorria obsessivamente o itinerário que o trouxera até ali. Lembrou mais uma vez como tudo tinha começado, dez dias atrás, naquela segunda-feira em que o telefone tocara tão cedo. Era o seu amigo da TV: ‘os produtores gostaram bastante da idéia. Entrega urgente o roteiro e daqui alguns dias conversamos’. O massacre do Carandiru acabara de acontecer e o assunto estava na mídia. ”Periculosidade Máxima” tratava justamente das condições de vida dos detentos desse perfil. Foi até o armário e pegou o envelope; uma irreverente linha cinzenta nas bordas denunciava os dois anos que jazia na gaveta. No mesmo dia o entregou a uma lacônica funcionária: ‘aqui está o comprovante do recebimento do seu texto. Por favor telefone em dez dias para marcar o encontro’.
Isso era tudo. Mas o fato é que ele estava aí, como um adolescente no vestibular, esperando ser sabatinado pelos executivos da TV. A secretária teve que repetir ‘senhor, senhor, por favor, pode entrar!...’ Na sala estava o seu amigo e mais três homens, dois deles não passavam dos trinta anos e o terceiro teria uns cinqüenta.
No íntimo, não o surpreendeu o que ouviu, seria muita ingenuidade pensar que aceitariam tudo assim sem mais. Se recompôs rapidamente e contra-atacou: tudo bem, não era estritamente necessário que aparecessem a polícia, os juizes e os políticos flagrantemente cúmplices com as mazelas do sistema carcerário (encontraria alguma outra maneira de fazer alusões ao tema sem se expor). Só que tirar os dois presidiários artífices das mudanças comportamentais do presídio, era demais. Eles alegaram que os sujeitos eram excessivamente cruentos e ‘endureciam’ o conjunto da história. (pretendiam retratar uma prisão ou um internato de moças!?.., além do que, como faria para dar consistência ao resto do enredo?)
Não arredou pé na defesa dos personagens e foi tão convincente, que os produtores lhe ofereceram uma alternativa: ‘usá-los enquanto fossem necessários’. Fariam parte do argumento até o momento do seriado em que se pudesse criar uma fuga e sumir com eles. Isto iria acompanhado de outras mudanças: se suprimiriam a cena do estupro do jovem tarado e o assassinato de outro detento, fatos protagonizados justamente pelos dois sujeitos em questão. Inconformado, o escritor continuou defendendo a idéia de que, nessas condições, seria muito difícil fazer uma história interessante. De nada adiantaram os seus apelos: ou era assim ou não seria de nenhuma outra maneira; só desse jeito o tema poderia lhes interessar. Falaram com a indissimulada arrogância de quem sabe que está pagando bem pelo trabalho.
Mais uma vez se deparava com o ‘não’ da mídia. Sentiu que seus 46 anos começavam a pesar-lhe. Tudo bem que com 22 tivesse ganho o prémio Philips pelo melhor relato de ficção. Fora ótimo fazer parte daquele grupo de escritores dos anos setenta que não foram coniventes com a ‘nova ordem’. Era muito legal poder se sentar e sonhar com alguma outra história por vir; chegaria como sempre, empurrada pelas tantas que a antecediam e embalada nas nuvens da maconha inspiradora. Mas algo não estava bem, aliás, nada bem. Sentia-se como os dois presidiários a serem suprimidos: fora de cena; apenas era um saudosista, cuja esperança de um mundo melhor se esvaia, junto com a poeira do muro de Berlim.
O tempo passava e fazia muito que ele não tinha algum texto publicado, nem um roteiro aprovado. Um ano atrás o “Jornal da Noite” havia cancelado As “Crónicas do Quotidiano”, e nem sinais de que voltariam a se interessar.
Até quando iria se policiar, em nome de que ética? Ele bem sabia que sempre era possível atravessar a estupidez da mídia e conferir singularidades à obra aparentemente mais banal. Estava na hora de confiar no seu talento e topar o desafio dos novos tempos. A alternativa era clara: ou aceitava o encargo, e se virava para gerar sentidos próprios nas frestas do relato, ou escolhia continuar sendo um joão-ninguém, o eterno anônimo, obra inacabada de dois tempos de signos incompatíveis; ele fora esculpido pelos sonhos dos anos sessenta e vivia espremido pelas urgências dos noventa.
Uma semana depois estava no escritório dos produtores. Entre outras coisas, lhe explicaram que o orçamento era apertado e que deveria evitar ao máximo trabalhar em exteriores, sabido que são um item caro na produção; a história teria que se desenvolver basicamente dentro da prisão. As tomadas externas se limitariam a algumas poucas, restritas à fuga dos dois criminosos e as conseqüentes buscas por parte da polícia. E, por falar em polícia, se lembraram de algo que o deixou maravilhado: lhe ofereceram instalar-se num belo apartamento que tinham acabado de alugar, propriedade de um delegado da Divisão de Homicídios. Estava mobiliado, tinha fax, computador, acesso à Internet e tudo o necessário para um roteirista desempenhar o seu trabalho no mais alto nível. Ficava num canto verde e tranqüilo da Gávea, protegido dos ruídos urbanos. E como se fosse pouco, por ser no térreo, tinha ainda o privilégio de gozar com exclusividade da vista do jardim do prédio, um verdadeiro paraíso. Ali poderia se isolar do seu ambiente quotidiano e seu trabalho, sem dúvida, renderia mais e melhores frutos. É claro que aceitou. Emprestou o seu ruidoso apartamentinho de Botafogo para um ator amigo e mudou-se para Rua dos Ciprestes, 34, térreo.
Começou a trabalhar no cenário da cadeia, tendo o máximo cuidado de não envolver guardas e autoridades. Para trazer o mundo exterior para dentro da prisão, apelou freqüentemente como ‘solução dramática’ a cenas das visitas dos familiares. A TV e o rádio lhe proporcionaram outras vias de contato com a realidade. Uma certa tristeza o tomou no oitavo capítulo ao descrever a fuga dos dois detentos que tanto o haviam ajudado a construir o relato, porém o combinado era isso. Sem empolgação, montou algo que tinha visto inúmeras vezes em filmes americanos: os prisioneiros fugiam escondidos nas enormes cestas de roupa suja que iam à lavanderia, claro está, num prévio ‘arranjo’ com algum guarda, recurso que a produção lhe permitiu utilizar, pois isso acontecia em todo lugar, e não iria ferir as autoridades do país.
Quando terminou o capítulo foi como se alguma coisa a mais fosse embora com aqueles malditos presidiários. Essa manhã parou de escrever por falta de idéias; passou as primeiras horas da tarde olhando o jardim e deixando vagar a imaginação, sem compromisso. O resto do dia também transcorreu em branco. Na manhã seguinte levantou-se com entusiasmo renovado, surpreendentemente o estimulava a sensação de ter que se virar nas novas condições. Assim deixou de pensar nos fugitivos e se concentrou nos outros nove detentos que continuavam no roteiro. Os dois dias seguintes renderam bem, estava satisfeito com o volume de trabalho.
Na terceira jornada fez como de costume, sentou-se para revisar o trabalho, analisá-lo e selecionar os textos definitivos. Levou um susto; se alguém lesse diria que não fora feito pela mesma pessoa. Sua escrita, tradicionalmente enxuta, havia produzido páginas e mais páginas cheias de obsessivos detalhes e excessos narrativos que, sabia muito bem, a linguagem televisiva não comporta, aliás abomina. Inexplicavelmente, os diálogos haviam-se amolecido e as situações dramáticas perdido consistência. Os personagens se esfarelaram e resultavam absolutamente inconvincentes. Um sentimentalismo gosmento substituiu a tensa economia dramática que aparecia até o sétimo capítulo. Porém, ele não era marinheiro de primeira viagem, outras vezes lhe acontecera algo similar. Apelou para o recurso que sempre dera bom resultado: parar. Daria um tempo até que tudo se recompusesse e uma nova dinâmica se instalasse na história. Claro que não poderiam passar mais de três ou quatro dias porque a produção televisiva exigia um rendimento que não dava espaço para muita folga. Como sempre viriam em seu auxílio os talentos de Joyce, Proust, Borges, Balzac, Conrad, e tantos outros em cujos textos se perderia. Falou com os produtores que, naturalmente, entenderam; só manifestaram a sua preocupação quanto aos prazos, mas se mostraram confiantes nele.
Como um ávido garimpeiro, percorreu as páginas dos gênios e abandonou-se a eles. Profussão de contos, descrições, relatos e crônicas povoaram os quatro dias seguintes. Porém, quanto mais lia mais distante ficava das obrigações da sua tarefa. Longe de trazerem soluções, aqueles bruxos o levavam por infindáveis mundos herméticos, indiferentes às suas necessidades. O pior era na hora de deitar; uma obsessão se havia instalado nele desde a primeira noite, só que agora, chegada a quarta, o peso dela lhe resultava insuportável. Mal fechava os olhos e, como um feitiço, apareciam aqueles dos presidiários nas mais diversas situações: tomando o café da manhã, jogando futebol na quadra do presídio, se masturbando, almoçando, brincando com os colegas, batendo neles. Por vezes, olhavam para ele com um ar que lhe gelava o sangue nas veias. Pareciam exigir-lhe uma explicação acerca do seu destino. Haviam-se convertido em fantasmas, e eram fortes demais para sumir e se perderem sem pena nem glória numa fuga inconseqüente. Ficou à beira do desespero. Atordoado, pensou que talvez ainda não fosse tarde demais: falaria com os produtores e tentaria convencê-los da necessidade do retorno dos personagens; sem eles o roteiro naufragaria. Tecnicamente, seria fácil resolver a captura dos fugitivos. O dilema era que havia concordado com as exigências de fazê-los sumir, mas, por outro lado, sem sua presença não era ninguém; estava claro que tinham se apoderado de tal modo da história que ela os reclamava impreterivelmente.
Fazia duas noites que não dormia e a brisa fresca lhe recordou que estava junto de uma floresta úmida e protetora. Para senti-la mais de perto adquiriu o hábito de dormir com a janela aberta. Morto de cansaço se enrolou no cobertor azul, na esperança de poder descansar, alentado pela tímida expectativa de solução que abrigava.
Até agora estava correndo tudo bem. Os policias tinham cumprido a sua parte no trato. A fuga fora tranqüila e, além do mais, lhes forneceram, como combinado, dois revólveres trinta e oito com munição. A grana que os colegas investiram na operação não era pouca, mas estava rendendo. Era de madrugada e o carro corria pela Avenida Brasil deixando para trás e para sempre, disso tinham certeza, Bangu I. Daqui a pouco deveriam assaltar um outro motorista para trocar de veículo, porque aquele otário de quem tomaram este, certamente já teria avisado à polícia. Estavam tão acostumados a isso que a próxima vez seria apenas mais uma, só que agora estavam determinados a tudo. A única hipótese excluída era a de voltar para a cadeia, antes a morte. Uma nova vida os aguardava, a última possível que, por curta que fosse, seria preferível à longa agonia de trinta anos de cadeia.
A primeira coisa era dar conta daquele filho da puta do delegado Darcy, aquele canalha que fazia questão de vê-los atrás das grades. Esta era a terceira vez que a sua teimosia fazia com que acabassem com os ossos na prisão, seria a última. Agora esse solteirão, seguramente brocha, iria ver o que era bom pra tosse. Não fora capaz de segurar uma mulher a seu lado e ter uma família como qualquer homem, ao invés de ficar cagando regra para cima da vida dos outros. Veriam se era tão certinho na hora de espichar, quanto se mostrava na frente do juiz ao falar sobre ‘os delitos dos acusados’; era o primeiro obstáculo a eliminar, sabia demais.
Pensando bem, seria menos perigoso fazer primeiro a operação na casa do delegado, para depois trocar de carro. Não era muito difícil: os vários ‘levantamentos’ que os colegas tinham feito até um mês atrás, confirmavam que o idiota se sentia tão seguro que não botava seguranças. O “Maluco” tirou do bolso o papel sujo com o endereço do homem e o desenho da localização do apartamento, que sua mulher lhe entregara durante a visita no Domingo. Olhou para o “Paraíba” e o mandou seguir em frente. Passados uns vinte minutos, fulminou: ‘na próxima, vira à direita e continua adiante até onde eu mandar’.
O relógio da rua marcava as 3.50. O “Paraíba” estacionou onde o cúmplice ordenou. Seguiriam a pé. O “Maluco” olhou novamente o endereço e o mapa: ‘é aqui’, disse. Como já sabiam, o muro do prédio não era alto, bastava que um desse apoio ao outro para pular facilmente os 2.20 metros de altura. Para regressar, bastaria que o outro segurasse com firmeza a corda de cânhamo com nós que levavam na sacola. O “Maluco”, além de corajoso, era bem mais leve que o corpulento “Paraíba”. Mandou-o encostar-se no muro e fazer um estribo com as mãos. Depois, subiu, se firmou nos ombros do colega e pulou para o interior do jardim. Tudo em silêncio e tranqüilo, como previsto. Puxou o revólver da cintura e se encaminhou para a janela aberta. Do interior do quarto chegava a respiração compassada do condenado. Olhou pela janela e o viu, estava de costas, sozinho, –como esperado–, enrolado num cobertor azul. Antes de disparar os cinco tiros, verificou o endereço da placa, para se certificar mais uma vez de que estava certo. Era isso mesmo: Rua dos Ciprestes, 34, térreo.
Texto: Alberto Azcárate / Foto do autor: arquivo pessoal